ATÁVICO (Solideus)
Nos meses depressivos de junho, julho e agosto
quando deixamos as barbas empestearem os rostos
e deixamos a sombra da animalidade por fazer
as sobras pro prazer
Recusar sua sina guiando-se pelo cheiro
perder-se do rebanho.
Quem tem fome de viver?
Adivinhar o tom das horas seguintes (o abandono do amanhã)
solitário como um deus
rico de humanidade pobre de utopias
Passar a vida a sujo
libertando a lira
e tocar um instrumento
quase arrancando uma confissão
a gritos de paixão, ódio, enternecimento
O trânsito caótico das paixões
a transitoriedade das coisas do ser
quando todos estão estáticos
como se faltassem pernas
o mergulho no mistério
a grandeza da dúvida
e a predileção por cavernas,
roubando à lua as trevas
devorando os desencontros na vida
um mundo próprio, quase um outro planeta
Talvez uma herança ancestral
um eremita, um canibal, um poeta
Na natureza tudo que perde se cria
( e o que cria se perde)
Tudo nos transtorna
Ao invés de olhar para as tristes luzes da cidade
famosas por sua alegria e beleza
contemplar
as belas luzes do poente
ociosas, em sua calma e tristeza
viagem (só) de Vida
sem volta
(Ozias Stafuzza)
(foto José Luis Espada Feio)
PEQUENO IDÍLIO
Havia um tempo , dançava um folguedo
escrevia brincando no desejo mais chão
Pulava acordes , soltava rimas
a palavra na ponta dos dedos
Rodava o pião em redondilhas
corria quadras , heróico, ligeiro
Subia nos galhos mais altos dos livros
escalava o verso perfeito
De pé quebrado , meu verso branco
brincando, a vida chegava sem jeito
Coisa de gente pequena
a palavra na ponta dos dedos
Bolas e notas, as noites mais belas
escolas de enxergar estrelas
Pílulas pra dormir
anticoncepcionais de poemas
pra não abandoná-los à própria sorte
coisa de gente terrena
Garimpo em rios secos fios rasos
a palavra da cor do dilema
Havia um tempo de se escrever brincando
Ora não se brinca de viver
E o que a vida fala não se escreve
a palavra escapou entre os medos
Quando escrevo não vivo
e viver não é brinquedo.
O SENSO COMUM
O Senso Comum
é irmão gêmeo do mau gosto
e o seu rosto é como o de qualquer um
Agride a tapas
com palavras caricatas, vazias
desconhece luvas de pelica, ironias
As coisas pequenas do mundo
só cabem no mundo das pequenas coisas
Ah, quem dera a grandeza
de estar
sem ser
Seja zen
seja sem
Não a anestesia batizada de paz
não a hipocrisia tingida de deus
ou o rótulo de ‘é tudo igual’
não a voracidade que atende por bom
(não a ganância que atende por ‘eu’)
nem rebeldia vestida de última estação
A assimilação doentia do mal
ÀS PAREDES
CANTIGA N° 10 – Os Pares
como mensagem de secretária eletrônica
Cálido
como campanário harmônico
E combinamos
(meus olhos insones, teus olhos insanos)
como café com funcionário público
como futebol e amante com matrimônio,
como Deus e o Demônio,
revista erótica com pelos púbicos,
psiquiatra com manicômio,
corrupção com erário público,
denúncia com represália,
o dólar e o falsário,
a beata e o rosário,
simpatia pra doentes,
antipatia pra chatos.
Solo em nosso idílio,
o exílio de teu solo assolado …
Antes amantes só
do que matrimoniados.
ADÉLIA À FLOR
Porque damos nomes às flores e sentimentos,
guardava os papeizinhos pra não me esquecer e afastar os perigos,
como um dia recolhias as cascas.
Só no teu reino de saltos e sobressaltos
manda a alegria dos doidos e de santos,religas a alma à poesia.
Expões nossos delírios feito pedras do rim,
veias, lírios, quem sabe camélias perfumadas ,
livros amarelados daquele sabor antigo:
Saudade , frases em espinhos trespassados de mel
Chego a pensar se passeias pelo mato
entre dálias , gerânios, azaléas.
Pudera beijar tuas sandálias e sair pelo mundo …
Viver de pouco debulhando as coisas e suas graças,
tirando as pedrinhas,
preparando os temperos ,disparado de pressentimento!
Mas, e depois, como ficar inteiro, à flor da pele de Adélia?
E ficar sem vontades
que não sejam as de fechar a concha, puxar a colcha
e ,sem sonho , se perder no escuro até virar pó?
(Porque damos nomes aos sentimentos das flores
resolvi fazer um poema pra ela,
pois mesmo sendo Adélia em sua origem nobre,
um pobre trovador pode decantá-la, pois, singela que é
não recusaria uma glosa)
Rosa do amor divino ,
que viva Divinópolis o mundo todo
pra eternizá-la em terço e prosa,
em verso e cordas
(que a vida roga uma obra dos céus como prova)!
ANTIGRAVITACIONAL
Então vivo nos mundos
da Lua,
de Vênus, de Marte,
da Via Láctea.
Qualquer parte, esfera,
que não a sua,
que não mais à sua
espera.
PÉS NA JACA
DE LIRA TREMENS
Por cansaço e reentrâncias na rua
um conhaque convidou-me a entrar e sentar.
Por lacunas e algumas manchas de ferrugem
um gosto de anos pisados
temperou minha língua.
E pus-me a falar com sombras …
Por papéis em branco e quadro negro futuro
as cãs me alertaram
que eu devia me deter
nas folhas, nos versos,
no sonho, nas camas.
Porque não queria ficar nem ir, decidir,
dissuadi-me, dissolvi,
pus-me a ler e escrever,
bebendo palavras amargas,
buscando seqüestrar os sentidos,
palitando fiapos rangentes
de músicas, fibras, livros e liras
até a dor criar barriga,
o céu fazer bico e pagar a conta.